Lembro-me claramente da vez em que sentei com a diretoria de uma pequena ONG de alfabetização no interior e, ao abrir a pasta com os comprovantes de despesas, ouvi um silêncio que dizia tudo: “Nós fazemos a diferença, mas não sabemos provar isso para ninguém.” Na minha jornada trabalhando com contabilidade do terceiro setor, vi esse cenário repetido diversas vezes — grande propósito, contabilidade frágil. Aprendi, na prática, que organizar a contabilidade transforma a forma como a organização capta recursos, presta contas e amplia impacto.
Neste artigo você vai aprender, de forma prática e direta, o que é contabilidade do terceiro setor, quais são as obrigações básicas, como montar um plano de contas funcional, quais demonstrações contábeis são essenciais, controles internos recomendados e como preparar prestações de contas para doadores e poder público.
O que é contabilidade do terceiro setor e por que ela é diferente?
Contabilidade do terceiro setor é o conjunto de práticas contábeis aplicadas a organizações sem fins lucrativos — associações, fundações, organizações da sociedade civil (OSCs), ONGs, OSCIPs. Diferente da contabilidade empresarial, o foco não é lucro, e sim a correta evidência da origem e aplicação dos recursos e da manutenção do patrimônio para cumprir a missão.
Por que isso importa?
- Transparência aumenta confiança de doadores e parceiros.
- Boa contabilidade facilita captação de recursos e celebração de convênios.
- Reduz riscos legais e fiscais por meio de prestação de contas adequada.
Base legal e normas que você precisa conhecer
Algumas referências essenciais que guiam a contabilidade do terceiro setor no Brasil:
- Lei nº 13.019/2014 — Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (regras para parcerias com o poder público). (https://www.planalto.gov.br)
- Decreto de regulamentação e normas do próprio Conselho Federal de Contabilidade (CFC) sobre contabilidade aplicada ao terceiro setor. (https://cfc.org.br)
- Instruções da Receita Federal sobre a qualificação e obrigações tributárias de entidades sem fins lucrativos. (https://www.gov.br/receitafederal)
É essencial acompanhar atualizações do CFC e das legislações federais porque a conformidade muda conforme novas regras e exigências.
Principais demonstrações contábeis para organizações do terceiro setor
As demonstrações contábeis recomendadas, adaptadas à realidade das entidades sem fins lucrativos, costumam ser:
- Balanço Patrimonial — mostra ativos, passivos e patrimônio social.
- Demonstração das Mutações do Patrimônio Líquido (DMPL) — evidencia as variações patrimoniais.
- Demonstração das Atividades ou Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) adaptada — mostra as receitas (doações, convênios) e as despesas por finalidade.
- Demonstração dos Fluxos de Caixa — essencial para gestão de caixa.
- Notas Explicativas — contextualizam valores e políticas contábeis.
Como apresentar receitas e despesas
Classifique receitas por natureza (doações, contribuição, convênios, prestação de serviços) e despesas por finalidade (administrativa, programas, captação). Mostrar o destino dos recursos é fundamental para a transparência.
Montando um plano de contas prático para ONG/OSC
Um plano de contas claro é a coluna vertebral da contabilidade do terceiro setor. Exemplos de grupos principais:
- Ativo: Caixa, Bancos, Contas a Receber, Imobilizado.
- Passivo: Obrigações trabalhistas, Obrigações com fornecedores, Receitas a Apropriar (convênios).
- Patrimônio Social: Patrimônio Social Permanecido, Reservas e Resultados.
- Receitas: Doações recebidas, Convênios recebidos, Receita de eventos, Receitas financeiras.
- Despesas: Despesas com programas, Despesas administrativas, Despesas de captação.
Dica prática: num software de contabilidade, crie centros de custo por projeto para acompanhar exatamente quanto cada programa consumiu.
Obrigatoriedades e prestações de contas
As obrigações variam conforme o regime jurídico e a existência de convênios ou incentivos fiscais. Em linhas gerais:
- Mantenha escrituração contábil regular e organizada (livros e sistemas digitais).
- Elabore relatórios financeiros periódicos e relatórios de atividades para doadores.
- Atenda exigências de convênios: termos de compromisso costumam exigir relatórios, comprovação de despesas e notas fiscais.
- Apure e comprove corretamente isenções e benefícios fiscais, quando aplicáveis (atenção à legislação tributária).
Controles internos essenciais
Já vi organizações perderem projetos por falta de documentos ou por falhas simples de controle. Implante, pelo menos:
- Segregação de funções (quem autoriza não deve executar pagamentos).
- Conciliação bancária mensal.
- Arquivo digital e físico organizado (com política de guarda documental).
- Checklist de prestação de contas para cada projeto/convênio.
Quando contratar auditoria independente?
Considere auditoria quando:
- Existem convênios ou contratos que exigem auditoria.
- Há volume de recursos significativo ou múltiplos financiadores.
- Deseja aumentar a confiança de grandes doadores e institutos financiadores.
Ferramentas e tecnologias que ajudam
Softwares contábeis específicos para ONG/OSC e ERPs simples com centro de custo facilitam a vida. Use planilhas só em último caso — elas são úteis, mas pouca escalabilidade e risco de erro.
Dicas práticas que aprendi no campo
- Comece pequeno, mas comece: organize um plano de contas mínimo e uma rotina de conciliações mensais.
- Padronize comprovantes: um único modelo de nota fiscal/recibo facilita auditoria.
- Comunique-se com o time: finanças não são vilãs — quem executa projetos precisa entender como as despesas serão registradas.
- Produza relatórios curtos e visuais para doadores: uma planilha bem explicada vale mais que 50 páginas de anexos confusos.
Erros comuns a evitar
- Misturar contas pessoais e da entidade.
- Não formalizar convênios/verbas via documento assinado.
- Deixar conciliações acumularem por meses.
- Não documentar critérios para rateio de despesas administrativas.
Checklist rápido para começar hoje
- Definir ou revisar o plano de contas.
- Configurar centros de custo por projeto.
- Implementar conciliação bancária mensal.
- Documentar políticas de compras e comprovantes.
- Preparar modelo de relatório financeiro e de atividades.
FAQ — dúvidas comuns
1. Entidade sem fins lucrativos precisa de contador registrado?
Sim. A contabilidade deve ser elaborada por profissional habilitado e a escrituração assinada conforme legislação vigente. Isso garante conformidade e credibilidade.
2. Quais demonstrações são obrigatórias?
As exigências podem variar. Em geral, recomenda-se Balanço Patrimonial, DMPL, Demonstração das Atividades (ou DRE adaptada) e Notas Explicativas. Convênios podem exigir relatórios adicionais.
3. Como comprovar doações recebidas em espécie?
Emita recibos nominais detalhando data, valor e finalidade. Mantenha a rastreabilidade com documentos de depósito e registros contábeis.
4. O que é mais importante: relatório financeiro ou relatório de atividades?
Os dois são complementares. O relatório financeiro mostra o uso dos recursos; o de atividades mostra o que foi realizado com eles. Doadores valorizam ambos.
Conclusão
Contabilidade do terceiro setor é mais do que números: é a tradução da missão em transparência e confiança. Organizar os registros contábeis transforma a capacidade de atrair recursos, prestar contas e multiplicar impacto. Comece pelas bases — plano de contas, conciliações mensais e relatórios claros — e vá amadurecendo controles e governança.
E você, qual foi sua maior dificuldade com a contabilidade do terceiro setor? Compartilhe sua experiência nos comentários abaixo!
Referências e leituras recomendadas:
- Texto da Lei nº 13.019/2014 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) — Presidência da República: https://www.planalto.gov.br
- Informações e publicações do Conselho Federal de Contabilidade sobre contabilidade aplicada ao terceiro setor — https://cfc.org.br
- Orientações da Receita Federal sobre entidades sem fins lucrativos — https://www.gov.br/receitafederal